Reportagem da revista Carta Capital, intitulada “Um tesouro dilapidado”, revela o desmonte da Embrapa para favorecer as multinacionais do agronegócio. Atuação do SINPAF, afirma o texto, ajudou o governo a descobrir irregularidades e afastar o ex-presidente. A matéria, publicada na edição dessa semana e assinada pelo repórter André Barrocal, mostra como a Embrapa tem perdido espaço para multinacionais como Monsanto (Estados Unidos) e Basf (Alemanha) no comércio de mudas e sementes, um negócio que beira os R$ 10 bilhões anuais.

A redução desse papel estratégico da empresa trouxe duas consequências graves: produtores, pequenos ou grandes, cada vez mais dependentes das empresas estrangeiras e falta de regulação nos preços dos alimentos, que pode afetar a soberania alimentar da população. Na matéria, o próprio presidente da Embrapa, Maurício Antônio Lopes, reconhece a situação. “O problema é sair completamente do mercado e permitir a concentração nas multinacionais”, admite.

A reportagem explica que a gestão pró-multinacionais na Embrapa ganhou força a partir de 2007, sob o comando de Pedro Arraes, que “trabalhou para o Estado brasileiro não atrapalhar os negócios privados, via concorrência, nem dar munição para ataques aos transgênicos e aos agrotóxicos das transnacionais, que empurram a produtividade nas fazendas”. Reflexo dessa postura subalterna foi oprimir fortemente a atuação do SINPAF, que criticava a gestão, e censurar a liberdade de opinião dos trabalhadores da empresa.

A reportagem cita, por exemplo, as circulares internas emitidas por Pedro Arraes proibindo pesquisadores de dar entrevistas e participar de debates sem autorização prévia da chefia. “A censura tinha caráter ideológico. Muitos pesquisadores acreditam que sua tarefa é desenvolver tecnologia para ajudar o campo a plantar, de olho no mercado interno, alimentos saudáveis, que não agridam (diretamente ou por meio de agrotóxicos que requerem) o meio ambiente e a saúde. Resistem à ideia de gastar energia para descobertas que sirvam apenas aos interesses dos grandes exportadores de monoculturas”, afirma outro trecho da matéria.

De acordo com o texto, a denúncia do SINPAF de que o então presidente Pedro Arraes planejava a criação de uma filial da empresa nos EUA, para facilitar o acesso estrangeiro ao banco genético e afrouxar ainda mais a relação comercial com as múltis, foi o estopim para as saída dele do comando da estatal. Para o SINPAF, a abertura da filial, projeto chamado Embrapatec (Embrapa Tecnologia SA) foi a forma encontrada para colocar o interesse público simplesmente à serviço do mercado internacional do agronegócio.

Um tesouro dilapidado PODER PÚBLICO | Como as disputas políticas paralisaram a Embrapa, um dos símbolos de excelência do Estado brasileiro

A PRESIDENTA Dilma Rousseff lançou na quinta-feira 14, em reunião com empresários, um pacote de investimento e financiamento públicos para estimular pesquisas na área de inovação e tecnologia na indústria. Ela aproveitou o anúncio para comunicar também a decisão de converter a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial em uma empreitada definitiva. Nascida como projeto experimental cm janeiro de 2012, a Embrapii é a aposta para impulsionar a descoberta de produtos e técnicas novas. Uma tentativa de fortalecer a indústria nacional ante a concorrência estrangeira.

Desenhada para ser uma entidade privada sem fins lucrativos do tipo “organização social” – na prática, uma parceria entre órgãos públicos, institutos de pesquisa e empresários -, a Embrapii foi inspirada em uma estatal criada durante a ditadura, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Por décadas, a Embrapa foi sinônimo de inovação e tecnologia. A que completará 40 anos em abril atravessou, porém, uma fase crítica até o fim de 2012 e agora tenta se reinventar.

A Embrapa perdeu espaço no Brasil nos últimos tempos como fornecedora de sementes e tecnologia aos produtores rurais, segundo um relatório do ano passado da empresa. No embalo da expansão acelerada do agronegócio e com uma direção amigável à frente da Embrapa, as multinacionais tomaram conta do comércio de mudas e sementes, negócio que deve movimentar 10 bilhões de reais este ano, nas contas da Associação Brasileira de Sementes e Mudas (Abrasem).

A colheita de grãos da safra 2012/2013, por exemplo, deve atingir a marca recorde de 185 milhões de toneladas, 50% a mais do que há dez anos. Nos tempos áureos, a Embrapa chegou a fornecer 60% das sementes de soja, o carro-chefe da produção nativa de grãos, responsável por quase metade da colheita. Hoje, a participação da semente estatal no cultivo de soja é irrisória.

O encolhimento trouxe duas consequências preocupantes apontadas no relatório. Uma foi a redução das opções de fornecedores dos agricultores – não importa o tamanho que tenham, ficam todos mais dependentes de transnacionais como a norte-americana Monsanto ou a alemã Basf. A outra foi tirar do governo um instrumento de regulação dos preços dos alimentos, determinados por vários fatores e, entre eles, o custo de mudas, sementes e matérias-primas em geral.

“Não há nada de extraordinário na perda de espaço da Embrapa. O problema é sair completamente do mercado e permitir a concentração nas multinacionais”, diz o presidente da empresa, Maurício Antônio Lopes, no cargo há cinco meses. “Há necessidade de investimentos públicos para garantir a diversidade de oferta.”

Para recuperar terreno. Lopes fechou em dezembro um acordo inédito com a Universidade Estadual de Campinas. – (Unicamp) para criar uma unidade conjunta de pesquisas na área de biotecnologia, cuja missão principal será produzir descobertas que façam frente àquelas das multinacionais. O principal objetivo é, porém, montar uma subsidiária que possa negociar, com visão empresarial e sem as amarras que engessam os órgãos públicos, as invenções de seus pesquisadores, como acontece com a equivalente francesa da estatal.

A chamada Embrapa Tecnologia seria um braço operacional que ampliaria a capacidade de ação mercadológica da empresa. Sua constituição depende da votação de uma lei no Congresso. A proposta foi aprovada em dezembro de 2012 por uma comissão do Senado, e Lopes trabalha para o Legislativo liquidar o assunto ainda em 2013. “Para manter o setor público operando, temos de lançar mão de estratégias novas, transformar conhecimento em produto.”

A Embrapa contabiliza hoje 980 projetos de pesquisa em andamento. E essa carteira que. por meio da subsidiária, Lopes quer negociar no mercado, seja na forma de produto final, seja como um ativo parcial que combinado com inovações das multinacionais, pudesse dar origem a uma novidade de valor. Segundo o Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (Sinpaf), os pesquisadores andam desanimados para seguir com os trabalhos. “Há uma crise de rumo estratégico na Embrapa”, afirma o presidente do Sinpaf, Vicente Almeida.

A crise mencionada nasceu de uma divergência profunda do sindicato com a filosofia do ex-presidente Pedro Arraes, que dirigiu a estatal de julho de 2009 a outubro de 2012. Funcionário de carreira como Lopes, Arraes trabalhou para o Estado brasileiro não atrapalhar os negócios privados, via concorrência, nem dar munição para ataques aos transgênicos e aos agrotóxicos das transnacionais, que empurram a produtividade nas fazendas. Foi por culpa de Arraes que a Embrapa perdeu espaço, na avaliação do sindicato, embora o sucessor do ex-presidente veja a situação como resultado de uma história mais antiga.

Em outubro de 2010, por exemplo, Arraes baixou uma circular interna na qual proibia os pesquisadores de dar entrevistas e participar de debates públicos. Eles só poderiam se manifestar se tivessem autorização prévia da chefia. Em fevereiro de 2011, o agrônomo vetou a participação de técnicos em um seminário no Congresso Nacional que discutiria a proposta de um novo Código Florestal, lei feita na medida para os grandes fazendeiros clientes das multinacionais.

A censura tinha caráter ideológico. Muitos pesquisadores acreditam que sua tarefa é desenvolver tecnologia para ajudar o campo a plantar, de olho no mercado interno, alimentos mais saudáveis, que não agridam (diretamente ou por meio dos agrotóxicos que requerem) o meio ambiente e a saúde. Resistem à ideia de gastar energia para descobertas que sirvam apenas aos interesses dos grandes exportadores de monoculturas.

Os produtores de menor porte, que em tese se beneficiam dessa visão predominante entre os pesquisadores, sentem falta da velha parceria. “A vida do agricultor familiar ficou muito pior, a Embrapa está deixando a desejar”, diz o secretário de Política Agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Antoninho Rovaris. “Temos de inverter as prioridades e mudar o foco da política adotada.”

Um exemplo de como os pequenos passaram a sofrer com o fato de as múltis terem se assenhoreado do mercado é o milho, integrante da cesta básica brasileira, cujo cultivo um dia teve 30% das sementes fornecidas pela Embrapa.

Segundo Rovaris, as sementes estatais estão ultrapassadas, e os agricultores conseguem volumes de produção (e lucros) bem superiores se usam os produtos da Monsanto. Só que a matéria-prima da norte-americana custa quatro vezes mais que a vendida pela Embrapa.

Carta Capital tentou obter da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), entidade que representa os grandes produtores, uma opinião sobre a atuação da estatal. A instituição preferiu não se pronunciar.

A tentativa de impor na Embrapa uma gestão pró-múltis e exportadores custou a Arraes uma guerra com o sindicato, cujo desfecho foi a sua demissão, em outubro, apenas dois meses depois de ter sido reconduzido para outro mandato de três anos. O motivo da exoneração foi uma denúncia feita pelo Sinpaf ao secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho. A criação de uma filial da Embrapa nos Estados Unidos, para cuidar da atuação internacional da estatal, presente em Gana (África) e na Venezuela, estaria marcada por irregularidades e más intenções.

Segundo o sindicato, Arraes planejava usar a filial para permitir o livre acesso estrangeiro ao banco genético acumulado pela Embrapa em 40 anos de pesquisas. Prova disso seria a escolha da sede, o estado norte-americano de Delaware, de leis consideradas permissivas. A filial também estaria destinada a desvirtuar o espírito que levou o governo Lula a apoiar a abertura de escritórios da Embrapa no exterior e a cooperação solidária com nações mais pobres. Estaria formatada para liberar o uso dos escritórios como porta de entrada, nos países pobres, para multinacionais.

O Sinpaf não teve mais dúvidas dos planos de Arraes quando a renovação de seu mandato à frente da estatal, anunciada em uma feira rural gaúcha em agosto, foi saudada pelo agronegócio durante o evento na voz do presidente da maior fabricante de tratores do mundo, a John Deere. Em discurso, Paulo Hermann fez referência explícita às “ramificações” da Embrapa “em todos os continentes”. A histórica fome na África, por exemplo, torna as planícies do continente potenciais consumidoras de tratores, os quais poderiam ser negociados com os governos locais a partir do escritório da Embrapa em Gana.

Dias depois da feira gaúcha, a Expointer, o Sinpaf procurou o ministro Gilberto Carvalho para apresentar a denúncia. Teria sido por causa das suspeitas pretensões que o ex-presidente decidira montar a filial por conta própria, sem consultar o Conselho de Administração da Embrapa ou o Ministério da Agricultura. A falta de autorização superior foi a razão jurídica utilizada por Dilma para mandar desfazer o negócio, afastar Arraes do cargo e pedir uma sindicância contra ele.

Aberta pelo Ministério da Agricultura, a sindicância não foi conclusiva sobre a culpa ou inocência de Arraes. Segundo o relatório final, era necessário aprofundar as investigações. O documento foi enviado em janeiro à Controladoria-Geral da União. Mais de dois meses depois, a corregedoria da CGU ainda analisa o relatório para definir as providências cabíveis. Segundo a corregedoria, o volume de trabalho superior à capacidade física da equipe impede uma análise mais rápida.

Duas semanas após a demissão, Arraes tornou-se assessor na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, hoje controlada pelo PMDB, o partido do ministro da Agricultura, Mendes Ribeiro Filho. A mudança de rumo da Embrapa com Arraes pode ser entendida a partir do avanço gradual do PMDB em órgãos públicos do setor rural de 2007 em diante. A partir do segundo mandato, o ex-presidente Lula aproximou-se dos ruralistas por razões políticas (reforçar o apoio ao governo no Congresso) e, sobretudo, econômicas. O ex-presidente da Embrapa não atendeu aos pedidos de entrevista.

Nos últimos anos, o Brasil virou um campeão de exportação de alimentos e, na opinião do atual presidente da Embrapa, deveria orgulhar-se do feito. Foi medalha de bronze em 2010 e até 2020, segundo um relatório do governo norte-americano, tomará o ouro dos Estados Unidos. As exportações recordes do agronegócio têm ajudado o País a manter uma balança comercial positiva na última década. Em janeiro, por exemplo, quando o governo registrou o pior déficit comercial mensal em 20 anos, de 4 bilhões de dólares, depois de sucessivos superávits, o resultado só não foi mais desastroso graças à agricultura, que rendeu um saldo favorável de 5 bilhões de dólares.

As boas relações políticas e econômicas com o setor iniciadas pelo ex-presidente foram mantidas pela sucessora, a ponto de Dilma enxergar hoje a presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, a senadora Kátia Abreu (PSD-TO), como uma aliada do governo mais ativa do que o PT. Apesar de existirem dúvidas sobre a permanência do ministro da Agricultura, a presidenta não pretende tomar a iniciativa de substituí-lo. Inclusive por solidariedade com um subordinado que sofre de uma doença que também a atingiu, o câncer. Dilma pode, porém, trocá-lo se o PMDB, o partido do ministro, fizer questão.

À diferença de Lula, a presidenta diminuiu o ritmo da reforma agrária, aposta do ex-presidente para equilibrar o jogo de forças entre grandes fazendeiros, de um lado, e agricultores familiares e sem-terra, de outro. Em dois anos de governo, foram apenas 80 decretos de desapropriação, um terço da média anual do segundo mandato do antecessor. Na terça-feira 5, ao participar do 11° Congresso da Contag, Dilma prometeu “acelerar a reforma agrária”. A ver.

Fonte: André Barrocal-Carta Capital

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